segunda-feira, 31 de maio de 2010

Pela humanização do ídolo - Por Ivan Capelli

Este é um texto de Ivan Capelli (http://www.blogdocapelli.com.br) que eu achei muito bom. Lí na segunda edição da revista online Warm Up (http://www.revistawarmup.com.br), indico a leitura a todos que gostam de automobilismo. E o meu amigo Marquinhos acabou me lembrando desse texto então vou deixar aqui para todos lerem.

Pela humanização do ídolo
Ivan Capelli - Revista Warm Up

Ayrton Senna foi um gênio das pistas, um esportista de alto nível e de expressão mundial. Mas, como eu e você, era humano.

* Coluna publicada na edição 2 da revista Warm Up.

Estamos em 2010, um ano no qual são lembrados os 50 anos de nascimento de Ayrton Senna e os 16 anos de sua morte. E desde março a gente acaba vendo de tudo um pouco por aí. E, confesso, me assusto.

Que sua família e seu Instituto têm todo o direito de lhe prestar homenagens, não há qualquer dúvida. Mas sinto um certo incômodo ao ver, pela internet, pela televisão e em todas as mídias possíveis, uma tentativa de canonização de um ser tão humano quanto outro qualquer. Não vai aqui uma tentativa de desvalorizar o grande piloto que Ayrton Senna foi, nem sequer de pichar sua memória. Mas, sim, de colocar as coisas no que julgo ser o seu devido lugar.

Senna foi um ídolo nacional, um dos maiores expoentes de um esporte de alto nível e de alcance mundial. Alguém que pode e merece ser lembrado por tudo o que fez. Mas que desde sua morte vem, forçadamente, sendo alçado a uma categoria de semideus, de onipotente, de oásis de todas as virtudes humanas. Menos, muito menos.

Que lembrar de Ayrton Senna nos remeta a coragem, destemor, persistência e obstinação, tudo bem. O que, no fim das contas, é uma commodity entre pilotos de corrida. E são atributos que, convenhamos, Chico Landi teve mais que todos os pilotos dos últimos trinta anos somados.

Amor à pátria? Não duvido do carinho que pudesse ter a seu país natal, mas é sempre bom lembrar que a primeira empunhadura da bandeira brasileira após uma vitória foi uma brincadeira interna com os mecânicos franceses da Renault que trabalhavam com ele na Lotus. Mais do que um ato redentor para um povo, na essência do gesto estava uma simples provocação entre colegas.

Portador de talento natural, sujeito de família e esportista também são valores que lhe caem bem. E que também servem para Guga, Maria Esther Bueno, Emerson Fittipaldi, Pelé ou César Cielo. Todos grandes campeões e que, em comum com Ayrton, são heróis do esporte nacional.

Ayrton Senna é isso: um herói do esporte, tão grande quanto Oscar Schmidt ou Bernardinho. E tão humano quanto Diego Maradona. Mas não é e nem nunca foi alguém acima do bem ou do mal, o embaixador da boa-vontade, o sujeito bondoso e benevolente sem manchas no currículo. Senna era (ainda bem) humano.

Como quando na Lotus, em 1986, vetou a entrada de Derek Warwick na equipe. O britânico era uma jovem promessa, falava a mesma língua da equipe e dividiria a atenção, tanto do time quanto da imprensa. Senna fez certo, eu provavelmente faria o mesmo. Mas, dependendo do ponto de vista, foi uma atitude ruim.
Tão ruim quanto a ocorrida no final dos anos 80, quando Ayrton tentou expulsar Reginaldo Leme da Rede Globo. Os dois ficaram anos sem conversar, mas a atitude de vetar entrevistas e prejudicar o trabalho do competente jornalista por causa de uma desavença pessoal mostrou o quão baixo um ser humano pode ser quando assume uma postura vingativa.

Se Senna hoje é um bastião da ética e da moral na vida, é bom lembrar que nas pistas as coisas nem sempre foram assim. Como em Mônaco, no começo de carreira, quando ficou andando devagar pela pista numa classificação para atrapalhar os pilotos que buscavam roubar-lhe a pole-position. Ou como nos famosos e infames duelos com Alain Prost, quando, empunhando a espada da vingança, valia tudo sob o argumento de ter sido injustiçado.

Senna não era tão bom, nem tão ruim. Era humano. Humano capaz de negar um autógrafo ao menino Felipe Massa, humano capaz de doar dinheiro para instituições de assistência à criança e a hospitais. Humano capaz de ser arrogantemente deseducado com uma tradutora numa entrevista coletiva e humano capaz de chorar de emoção depois de uma difícil vitória. Um humano que deu um soco na cara de um novato atrevido e que também desceu do carro no meio de um treino para socorrer um colega que sofrera um acidente.

Nada do que foi dito aqui é desabonador. Sei que o texto parece herético, mas não deveria parecer. Se parece, é porque o tempo todo se tenta atribuir qualidades sobreumanas a alguém que, assim como eu e você, era demasiadamente humano.

Vencedor, campeão, gênio das pistas. Mas humano.

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